SOBRE LÍNGUA, LINGUAGEM E LINGUÍSTICA –
UMA ENTREVISTA COM MÁRIO A. PERINI
1-) O que é
língua?
R: Chamamos “língua” um sistema programado em nosso cérebro que,
essencialmente, estabelece uma relação entre os esquemas mentais que formam
nossa compreensão do mundo e um código que os representa de maneira perceptível
aos sentidos.
2-) Qual a
relação entre língua, linguagem e sociedade?
R: a relação entre língua e linguagem é que uma “língua” é uma das
maneiras como se manifesta exteriormente a capacidade humana a que chamamos
“linguagem”. Mas o termo linguagem é também aplicado a outros tipos de sistemas
de comunicação, que normalmente não são chamados línguas, como o sistema de
sinais de trânsito e a linguagem das abelhas. Assim, linguagem é um conceito
muito mais amplo do que língua: a linguagem inclui as línguas entre suas manifestações,
mas não apenas as línguas. A sociedade funciona através da cooperação e/ou
conflito entre os homens, e a linguagem medeia esses processos de maneira
crucial.
3-) Há vínculos necessários entre
língua, pensamento e
cultura?
R: Entre língua e pensamento certamente há. Apesar de a língua ser primariamente
um instrumento de comunicação, ela é também um instrumento de pensamento. Ou
seja, podemos utilizar a língua para pensar, e constantemente o fazemos. Os
vínculos entre língua e cultura, existem porque a cultura inclui manifestações
de base linguística, como a literatura (oral e escrita), o humor, as fórmulas e
rituais para as diversas ocasiões da vida (nascimento, funeral, casamento,
encontros na rua etc.), e todas essas manifestações são marcadas por expressões
linguísticas especiais. A poesia, por exemplo, utiliza certos tipos de métrica,
rima aliteração etc., que são específicas de cada língua. Além disso, a poesia
lança mão constantemente de associações que são específicas daquela cultura, e
que deixam de funcionar quando traduzidas: pode-se lembrar, por exemplo, como é
difícil para um ocidental perceber a beleza poética dos hai-kais japoneses
quando traduzidos.
4-)
Linguagem tem sujeito?
R: Perini – Sinceramente, não compreendo a pergunta. A palavra “sujeito”
vem assumindo uma gama tão extensa de significados que não vejo como
responder sem que pelo menos 50% dos leitores achem que estou fugindo ao tema.
Vamos definir direito o que se entende por “sujeito”, e aí talvez eu possa
responder.
5-) O que é
linguística?
R: A linguística é uma tentativa de descrever e compreender um fenômeno muito misterioso: uma pessoa pode comunicar a outra certas idéias
através de sinais sensorialmente perceptíveis. Em outras palavras, é o estudo
dos códigos usados pelas pessoas para se comunicarem, e da capacidade inata que
nos permite levar a efeito essa atividade.
6-) Linguística é ciência ?
R: Perini – Acho que sim, em princípio, mas tenho restrições quanto à
maneira como alguns linguistas entendem esse “status” de ciência. Talvez o
melhor seria dizer: a linguística pode ser uma ciência, dependendo de como a
praticarmos. Se for uma ciência, é sem dúvida uma ciência empírica, ou seja,
empenhada em descrever um aspecto do universo e em construir teorias que
expliquem os fenômenos descritos.
7-) Para que serve a linguística?
R: A linguística, como toda ciência, serve para aumentar nosso
conhecimento e nossa compreensão de alguns aspectos do mundo. Por outro lado,
ela pode ter aplicações (ver questão 8), mas estas não fazem parte de sua
fisionomia fundamental; são decorrências acidentais. Mal comparando, ficamos
muito felizes em saber que a química permite a criação de medicamentos; mas não
se pode dizer que a química tem como objetivo a fabricação de remédios. O que a
linguística faz, e o que faz dela uma ciência, é descrever e (na medida do
possível) explicar o fenômeno da linguagem.
(8-) A linguística teria algum
compromisso necessário com a educação?
R: Os linguistas, como cidadãos, devem ter, e geralmente têm, um grande
compromisso com a educação. As principais aplicações do conhecimento
linguístico se voltam para questões educacionais. Por isso, na prática, a
linguística e a educação se ligam bem de perto. Muitos linguistas se preocupam
com as aplicações de sua disciplina a problemas educacionais, e podem mostrar
alguns resultados importantes, notadamente na área
do ensino de línguas estrangeiras.
9-) Como a
linguística se insere na pós-modernidade?
R: Em um sentido, “pós-modernidade” se refere a um movimento que, me
parece, tem como objetivo subordinar o trabalho científico a considerações de
ordem ideológica, menos nítidos, e pelo menos alguns podem não subsistir por
muito tempo; isso só o tempo vai dizer. Como disse, não há nada de realmente
novo nesse processo: aconteceu sempre, e vai continuar acontecendo. É preciso
encarar essa integração com espírito crítico, pois há uma tendência a aceitá-la
sem exame pelo simples fato de estar na moda: a pesquisa linguística seria
submetida a uma cláusula de interdisciplinariedade compulsória.
10-) Quais os desafios da linguística
para o século XXI?
Distingo dois aspectos nessa pergunta, os desafios teórico-metodológicos;
e, de outro, a questão da relação da linguística com áreas limítrofes. Do ponto
de vista teórico-metodológico, o grande desafio deve ser uma reavaliação
rigorosa e impiedosa das teorias à luz dos dados da experiência. Isso implica
em valorizar mais o trabalho descritivo frente à elaboração de teorias e
modelos de análise. O trabalho científico se compõe de observação e teorização,
e nenhum desses aspectos é dispensável. Mas nem a observação sem teoria nem a
teorização sem dados tem utilidade. No momento, acredito que se tem teorizado
excessivamente, e em certos setores percebo quase que um desprezo pelo trabalho
descritivo. Não acredito que nosso conhecimento da linguagem esteja avançado a
ponto de permitir a elaboração de teorias abrangentes e detalhadas como algumas
das teorias atualmente correntes; acho que a linguística está, em grande parte,
no estágio da “história natural”, em que a prioridade é o levantamento de dados
confiáveis e sua sistematização segundo princípios rigorosos. Vou repetir: o
problema não é a teorização, mas a teorização prematura, isto é, sem
fundamentação suficiente nos dados.
Já do ponto de vista da relação da linguística com as áreas limítrofes,
creio que a tendência que se observa hoje vai continuar: cada vez mais, será
necessário levar em conta a relevância da informação de ordem psicológica,
cognitiva e sociológica para a descrição das línguas, e muito em especial para
a construção da teoria. Ou seja, a linguística, tal como tantas outras
disciplinas, deverá se redefinir em parte, progressivamente, à medida que
avança o século.
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