sexta-feira, 2 de março de 2012


SOBRE LÍNGUA, LINGUAGEM E LINGUÍSTICA –
UMA ENTREVISTA COM MÁRIO A. PERINI

1-) O que é língua?
R: Chamamos “língua” um sistema programado em nosso cérebro que, essencialmente, estabelece uma relação entre os esquemas mentais que formam nossa compreensão do mundo e um código que os representa de maneira perceptível aos sentidos.

2-) Qual a relação entre língua, linguagem e sociedade?
R: a relação entre língua e linguagem é que uma “língua” é uma das maneiras como se manifesta exteriormente a capacidade humana a que chamamos “linguagem”. Mas o termo linguagem é também aplicado a outros tipos de sistemas de comunicação, que normalmente não são chamados línguas, como o sistema de sinais de trânsito e a linguagem das abelhas. Assim, linguagem é um conceito muito mais amplo do que língua: a linguagem inclui as línguas entre suas manifestações, mas não apenas as línguas. A sociedade funciona através da cooperação e/ou conflito entre os homens, e a linguagem medeia esses processos de maneira crucial.

3-) Há vínculos necessários entre língua, pensamento e
cultura?
R: Entre língua e pensamento certamente há. Apesar de a língua ser primariamente um instrumento de comunicação, ela é também um instrumento de pensamento. Ou seja, podemos utilizar a língua para pensar, e constantemente o fazemos. Os vínculos entre língua e cultura, existem porque a cultura inclui manifestações de base linguística, como a literatura (oral e escrita), o humor, as fórmulas e rituais para as diversas ocasiões da vida (nascimento, funeral, casamento, encontros na rua etc.), e todas essas manifestações são marcadas por expressões linguísticas especiais. A poesia, por exemplo, utiliza certos tipos de métrica, rima aliteração etc., que são específicas de cada língua. Além disso, a poesia lança mão constantemente de associações que são específicas daquela cultura, e que deixam de funcionar quando traduzidas: pode-se lembrar, por exemplo, como é difícil para um ocidental perceber a beleza poética dos hai-kais japoneses quando traduzidos.
4-) Linguagem tem sujeito?
R: Perini – Sinceramente, não compreendo a pergunta. A palavra “sujeito” vem assumindo uma gama tão extensa de significados que não vejo como responder sem que pelo menos 50% dos leitores achem que estou fugindo ao tema. Vamos definir direito o que se entende por “sujeito”, e aí talvez eu possa responder.

5-) O que é linguística?
R: A linguística é uma tentativa de descrever e compreender um fenômeno muito misterioso: uma pessoa pode comunicar a outra certas idéias através de sinais sensorialmente perceptíveis. Em outras palavras, é o estudo dos códigos usados pelas pessoas para se comunicarem, e da capacidade inata que nos permite levar a efeito essa atividade.

6-) Linguística é ciência ?

R: Perini – Acho que sim, em princípio, mas tenho restrições quanto à maneira como alguns linguistas entendem esse “status” de ciência. Talvez o melhor seria dizer: a linguística pode ser uma ciência, dependendo de como a praticarmos. Se for uma ciência, é sem dúvida uma ciência empírica, ou seja, empenhada em descrever um aspecto do universo e em construir teorias que expliquem os fenômenos descritos.

7-) Para que serve a linguística?

R: A linguística, como toda ciência, serve para aumentar nosso conhecimento e nossa compreensão de alguns aspectos do mundo. Por outro lado, ela pode ter aplicações (ver questão 8), mas estas não fazem parte de sua fisionomia fundamental; são decorrências acidentais. Mal comparando, ficamos muito felizes em saber que a química permite a criação de medicamentos; mas não se pode dizer que a química tem como objetivo a fabricação de remédios. O que a linguística faz, e o que faz dela uma ciência, é descrever e (na medida do possível) explicar o fenômeno da linguagem.

(8-) A linguística teria algum compromisso necessário com a educação?

R: Os linguistas, como cidadãos, devem ter, e geralmente têm, um grande compromisso com a educação. As principais aplicações do conhecimento linguístico se voltam para questões educacionais. Por isso, na prática, a linguística e a educação se ligam bem de perto. Muitos linguistas se preocupam com as aplicações de sua disciplina a problemas educacionais, e podem mostrar alguns resultados importantes, notadamente na área
do ensino de línguas estrangeiras.
9-) Como a linguística se insere na pós-modernidade?
R: Em um sentido, “pós-modernidade” se refere a um movimento que, me parece, tem como objetivo subordinar o trabalho científico a considerações de ordem ideológica, menos nítidos, e pelo menos alguns podem não subsistir por muito tempo; isso só o tempo vai dizer. Como disse, não há nada de realmente novo nesse processo: aconteceu sempre, e vai continuar acontecendo. É preciso encarar essa integração com espírito crítico, pois há uma tendência a aceitá-la sem exame pelo simples fato de estar na moda: a pesquisa linguística seria submetida a uma cláusula de interdisciplinariedade compulsória.

10-) Quais os desafios da linguística para o século XXI?

Distingo dois aspectos nessa pergunta, os desafios teórico-metodológicos; e, de outro, a questão da relação da linguística com áreas limítrofes. Do ponto de vista teórico-metodológico, o grande desafio deve ser uma reavaliação rigorosa e impiedosa das teorias à luz dos dados da experiência. Isso implica em valorizar mais o trabalho descritivo frente à elaboração de teorias e modelos de análise. O trabalho científico se compõe de observação e teorização, e nenhum desses aspectos é dispensável. Mas nem a observação sem teoria nem a teorização sem dados tem utilidade. No momento, acredito que se tem teorizado excessivamente, e em certos setores percebo quase que um desprezo pelo trabalho descritivo. Não acredito que nosso conhecimento da linguagem esteja avançado a ponto de permitir a elaboração de teorias abrangentes e detalhadas como algumas das teorias atualmente correntes; acho que a linguística está, em grande parte, no estágio da “história natural”, em que a prioridade é o levantamento de dados confiáveis e sua sistematização segundo princípios rigorosos. Vou repetir: o problema não é a teorização, mas a teorização prematura, isto é, sem fundamentação suficiente nos dados.
Já do ponto de vista da relação da linguística com as áreas limítrofes, creio que a tendência que se observa hoje vai continuar: cada vez mais, será necessário levar em conta a relevância da informação de ordem psicológica, cognitiva e sociológica para a descrição das línguas, e muito em especial para a construção da teoria. Ou seja, a linguística, tal como tantas outras disciplinas, deverá se redefinir em parte, progressivamente, à medida que avança o século.




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